Passion
Devagar, pegou cada uma das cartas e jogou no mar.
As ondas quentes e vermelhas de fim de tarde beijavam seus pés, levavam suas
lágrimas. Aos poucos ia relembrando os momentos felizes; as brincadeiras bestas
de quando eram adolescentes; o primeiro beijo – aquele embaixo da chuva, em um
bequinho, na frente de uma grande amigo de ambos; a primeira vez dela; o primeiro
“eu te amo” dele...
O fim nunca é uma coisa simples, corriqueira.
Principalmente se ainda existe algo entre os enamorados. Olhou para seus pés
molhados e salgados, lembrou dos momentos em que corriam soltos pela cidade,
achando que nada os deteria, que nada os separaria. Tantas lembranças eram levadas
por aquelas ondas, tanto sentimentos vinham à tona. Entre as cartas havia
algumas fotos do casal apaixonado, tirada enquanto se beijavam. Chorou
desesperadamente.
Foi para casa, tomou um banho demorado. Decidiu
que não mais iria sofrer, que não mais ia chorar. Foi até a cozinha, pegou uma
das facas de desossar frangos e voltou para o banheiro, ficando de frente para
o grande espelho.
Tinha de ser forte. Aquele era o único jeito.
Seria mais fácil se conseguisse que outra pessoa fizesse por ela, mas o risco
era muito grande, ninguém iria querer tamanha responsabilidade. Muitos diriam
que era um ato covarde, desesperado. Mas ela ERA covarde... Realmente estava
desesperada. Pegou a faca e, com muito mais força que achava que possuía,
cortou a pele do peito esquerdo. A dor foi excruciante. Foi quase insuportável.
Retirou a gordura, raspando a pele com a faca.
Enfiou a mão direita onde antes havia um seio. Estava viscoso. Penetrou sua mão
cada vez mais fundo no buraco em seu peito e retirou seu coração, ainda
pulsante.
Cambaleando, foi até o quarto, abriu o guarda-roupa,
pegou um baú. Mal teve forças para pegar as chaves em seu bolso, abriu cada uma
das sete fechaduras. Guardou lá seu coração.
O Vazio ainda se apoderava de seu peito... A sensação
de que algo faltava. Voltou para o banheiro. Costurou o rombo em seu peito com
fio dental. Limpou um pouco do sangue que tinha se espalhado no cômodo. Foi até
a garagem, pegou sua serra elétrica. Ligou-a na tomada. Olhou-se no espelho. Já
não doía tanto... Conseguiria sobreviver.
Posicionou a serra em sua cabeça. Com um forte
barulho, a serra arrancou a parte de cima de seu crânio. Desligou a
serra, foi até a biblioteca. Entre Dijk e Fairclough estava seu cérebro. Novo
em folha, nem parecia que tinha ficado tanto tempo guardado, só esperando para
ser usado. Posicionou-o novamente de onde nunca deveria ter saído, costurou o
couro cabeludo.
Seguiu sua vida, como se nada tivesse acontecido.
Algumas vezes o coração tomava seu lugar no corpo, mas, nunca mais o cérebro
saiu dali. Lembrou que sempre se referiam aos dois amantes como uma única
estrela, indivisível, inalcançável, um não sobreviveria sem o outro. Depois de
muito refletir, descobriu que estavam certos quanto a uma única coisa:
realmente eram estrelas! Só que, não aquelas estrelas românticas que povoam os
sonhos e os céus. Não. Eram uma estrela-do-mar, um só ser que, mesmo repartido,
sobrevive.
Como se nada tivesse acontecido.
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