Reflexão da Semana

A paixão da sua vida
( Marina Colasanti)
Amava a morte. Mas não era correspondido.
Tomou veneno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.
Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coração.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Amanda ama chá

Amanda ama chá.

Amanda chegou em casa como sempre. Tentou ligar o interruptor da sala, ao lado da porta. Nada aconteceu. Suspirou. Era sempre daquele jeito: a fiação da velha casa estava precisando ser trocada, mas ela não tinha tido tempo ainda.
Fechou a porta da sala, chamou Wilow, seu cachorrinho. Esperou. Chamou novamente. Nada.
Decidiu que seria bom tomar um gostoso chá a luz de velas. Conhecia a casa na ponta dos dedos e, sem esbarrar em nada, foi até a cozinha preparar seu chá. Pegou a chaleira, encheu de água filtrada. Sentiu algo passar por entre suas pernas.
- Wilow, seu danadinho – agachando-se para acariciá-lo – você demorou para vir aqui, em? – esfregou a pelagem dura e úmida do cachorro – Nossa, seu porcalhão! Andou bebendo água da fonte de novo? – Disse se referindo à bonita fonte que ficava no salão de inverno.
A casa que Amanda herdou pertencia, na verdade, aos familiares distantes de seus avós maternos. Alguma coisa acontecera e, sendo a única da família ainda viva, a casa lhe veio como um presente quando as suas dívidas a fizeram beirar a falência.
Amanda largou Wilow, lavou sua mão, pegou a chaleira e colocou no fogão, riscando o fósforo. No momento de clarão, todo o ambiente se iluminou com a chama e formas macabras surgiram nas paredes, Amanda simplesmente ignorou-as, como se já as conhecesse.
Enquanto esperava, ligou o player de seu celular, colocou a lista de cantoras francesas e acendeu a vela. Wilow se aproximou por baixo da mesa, como se evitasse a luz, encostando sua pesada cabeçorra nas coxas de Amanda.
- Ei, cabeção, to te dando muuuuuita ração, né? – disse em tom de brincadeira – Ainda por cima, você fica o tempo todo se molhando na fonte, hein? – Disse Amanda, puxando sua mão -  Olha quanta bab...
Amanda franziu os olhos. A baba de Wilow já não estava aquosa e transparente, como antes. Era viscosa, preguenta e cheirava fortemente a acre.
Amanda se assustou. Afastou a cabeça do cachorro de sua perna e ela saiu rolando pela cozinha. Sem conseguir pensar direito, Amanda tentou juntar as peças, aterrorizada. Se a cabeça de Wilow estava no chão, o que estava embaixo da mesa?
“Deve ser coisa da minha imaginação”
Levantou a toalha da mesa e viu um ser completamente repugnante, embebido em uma substância sanguinolenta. Num movimento, Amanda correu em direção a sala.
Esbarrou em todos os móveis da casa: tudo estava fora do lugar. Chegou a porta, tentou desesperadamente abrir, mas a fechadura idiota estava emperrada.
Esbarrou no interruptor que, milagrosamente, acendeu.
A casa estava completamente revirada.
Ao lado da porta da cozinha estava o ser com o resto do corpo de Wilow na boca.
Fechou os olhos, em oração.
Entreabriu os olhos. Pela última vez, suspirou.

Na cozinha, um som melancólico ressoava. Era Piaf, com sua voz de taquara rachada, pedindo-lhe que não a deixasse mais... Como se a morte já não fosse tortura suficiente. 

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