Reflexão da Semana

A paixão da sua vida
( Marina Colasanti)
Amava a morte. Mas não era correspondido.
Tomou veneno. Atirou-se de pontes. Aspirou gás. Sempre ela o rejeitava, recusando-lhe o abraço.
Quando finalmente desistiu da paixão entregando-se à vida, a morte, enciumada, estourou-lhe o coração.

sábado, 14 de maio de 2016

Em um outro universo, talvez


Todos sabiam o que ele era: alto, bonito, rico, filantropo... estuprador. Ser estuprador era um daqueles detalhes relativos – se você fosse homem, pensaria apenas que a tal garota que alegava ter sido estuprada estava querendo fama (de puta) e dinheiro (e o que mais alguma mulher iria querer?); sendo uma mulher de verdade (não aquelas vagabundas que num gostavam de pau ou que até gostavam, mas não se limpavam como uma mulher deve fazer... cheia de pelos, urgh), apoiaria o que a nossa nobre sociedade afirmava, ou seja, pensaria apenas que a tal garota que alegava ter sido estuprada estava querendo fama (de puta) e dinheiro (e o que mais alguma mulher iria querer?).
Várias meninas já tinham ido à delegacia para denunciá-lo. A mídia até fazia algum estardalhaço, mas certamente acontecia o que sempre acontece quando o criminoso é rico: as provas se vão, os advogados se articulam, os juízes são comprados, a mídia distorce e voilà: de vítima a mulher se torna mais uma interesseira e Devitto se torna mais um pobre coitado.
O mais legal não era a comoção quando ele ia preso, mas a festa que ele promovia após a soltura. Essa também era de arromba! Só essa semana ele foi “conduzido à delegacia para esclarecimentos” duas vezes. A primeira tinha sido uma outra garota que ele apalpara dentro do ônibus – ele gostava de subir nos ônibus para admirar as bacanudas que se mostravam ou se roçavam nele. A outra, por abordar simpaticamente uma vagabunda na rua, uma dessas putas de shortinho curto de seus quase 18 anos na cara, que ficou se oferecendo para ele enquanto pedia parada no ponto de ônibus. Ambas foram descartadas em poucos minutos pelo amigo de Devitto, o delegado Brasilit. Inclusive, Brasilit fazia questão de comparecer a todas as festas: era ótimo ter como argumentar que o delegado conhecia a fama da moça que o estava acusando.
A festa dessa vez era temática: “Meus doces 15 anos”, em homenagem à piranha do shortinho curto. Ela foi até convidada de honra, olha que legal, mas não pôde comparecer porque tinha se matado, coitada. Mulher é mesmo um bicho fraco, né? Num aguenta uma brincadeirinha... Tudo estava às mil maravilhas. Seus amigos todos estavam com suas escolhidas – elas quisessem ou não. Tinha deles que estavam com três meninas para alternar entre si... prazer triplo para eles, tripas para elas.
Devitto tinha escolhido Duênia. Linda no vestido soltinho vermelho puta, rosto negro e perfeito... uma deusa. Levou-a para o quarto, ela muito à vontade com a situação. Ele não gostou. Só tem graça quando elas imploram para ele parar.
- Como você gosta? – perguntou enquanto tirava a roupa.
Duênia corou.
- Não quero nada muito violento... quero uma trepada mais rápida.
- Algo não muito violento... e rápido... – sorriu. Então seria lento e violento. Perfeito.
Ele arrancou o vestido dela e, pela primeira vez naquela noite, o medo invadiu o quarto. Cambaleou. Ambos caíram na cama.
O primeiro filete de sangue saiu do nariz e apareceu lençol. O urro ensurdecedor fez as paredes vibrarem. Até as células se aceleraram! Começou a trabalhar. Primeiro separou as pernas, amarrando nas braçadeiras de couro firmemente presas à cama. A cena era linda demais: a pessoa se borrando literalmente de medo. Os pensamentos ficam tão claros: “Por que isso está acontecendo?”, “Por que comigo?”, e o que mais gostava: “Alguém pode me ajudar? Socorro!”. Era tão mais legal assim!
Começou abrindo o estojo com suas ferramentas de sempre. Escolheu o chicote com esporas... era o que deixava as melhores cicatrizes. Começou a passar no corpo. Primeiro devagar, depois para tirar sangue. O primeiro naco de pele que saiu demorou a sangrar. Melhor assim, mais diversão. O pandemônio começou também nas outras suítes. Gritos, pedidos de socorro, urros... de nada adiantava! O próprio Devitto projetara aquelas paredes. Dentro da casa se ouvia tudo – era um charme a mais, já do lado de fora nada se ouvia... Era a paz necessária.
O sangue empapava seu corpo. O lençol, então, parecia ter sido sempre daquela cor de sangue seco. Depois de algumas horas, Duênia já estava quase morta e o próprio Devitto tinha desmaiado há pouco tempo... estava sendo mais cansativo do que esperara. Sempre ganhava um novo fôlego quando ela tentava segurar seu braço. Enfim, o cansaço lhe dominara.
Num último esforço, Duênia pegou o alicate de cutícula – aquele pequeno, mas afiado – e começou a cortar o que restava do pênis de Devitto. O sol começara a nascer e o quarto ia se alaranjando e avermelhando de forma suave e gradual. Era agradável ver aquilo. Era nesses momentos que ela mais lamentava um dos olhos ser de vidro.
Terminou o serviço e Devitto já estava morto havia algum tempo. Não tinha problema, sabia que ele tinha sentido cada golpe. Os olhos azuis do homem se arregalaram quando arrancara o vestido dela: o vestido era folgadinho para esconder as diversas bolsas pretas que envolviam o corpo da mulher. Ela era magérrima, pele cheia de cicatrizes. Quando ele olhou atônito para seu rosto, percebeu que um dos olhos não se movia rapidamente como outro. O pior de tudo foi saber que conhecia aqueles dentes resinados. Ele mesmo quebrara quatro deles com um soco.
Duênia tinha sido uma das primeiras vítimas de Devitto, oito anos antes. Na época, ela tinha 16 anos e era uma modelo em ascensão. Ele tinha conseguido se aproximar dela por meio de uma agência de propagandas e foi necessário muito dinheiro para calar sua família. Agora aquela menina se tornara uma mulher cheia de cicatrizes, mas com o olhar obstinado. Quando Devitto percebeu, já era tarde demais. Ela injetou nele alguma substância que aumentava as sensações de dor e prazer em sua pele. O golpeou no nariz e ele quase desmaiou de dor, paralisado na cama. Sentiu a mulher se desvencilhar dele e amarrar seus pulsos e tornozelos. Quando ouviu os urros nos quartos ao lado, constatou que todos os homens que ali estavam iriam morrer.
Quando finalmente amanheceu, todas as garotas saíram dos quartos e sorriram umas para as outras. Aqueles vermes tinham sido eliminados! Se abraçaram, choraram juntas, se consolaram. Agradeceram mais um final feliz. Para elas. O mordomo ajudou a saírem da casa sem serem vistas... Duarte tivera a filha ceifada por um daqueles trogloditas.
Nesse mundo de dor e sofrimento, as mulheres sofrem com diversas privações. São políticas públicas que não ajudam, homens que maltratam, mulheres que já sofreram tanto com esse sistema que sequer se sensibilizam com as agressões sofridas... mas não elas. Duênia foi a primeira a abrir em uma rede social uma espécie de grupo de ajuda para mulheres que tinham sido abusadas, mas que seus abusadores eram ricos demais para serem presos. A rede foi crescendo e muitas das mulheres que participavam eram ricas, o que ajudou a financiar as amazonas. Aprenderam a lutar, tinham acompanhamento psicológico, psiquiátrico e o mais importante: tinha acesso à sororidade.
A primeira delas a matar foi Dehíse, quando sequer fazia parte do grupo. Duênia pode ter sido a criadora do grupo, mas a estrategista era Dehíse. Ela pensava em tudo: o que vestir, como agir, o que dizer se for pega... Uma mente insuperável, com marcas que só a dor consegue deixar. Matar não era punição suficiente, então elas faziam estupradores serem presos pelos outros crimes que cometiam.
Naquela noite, 22 homens acusados de estupro tinham sido eliminados com sucesso. Cada homem daquele já tinha matado em vida mais de 30 mulheres, fora as que se suicidavam. Era por essas mulheres que cada uma das meninas lutava.

Quando chegaram em casa, uma fila de mulheres esperava. Ainda tinha muito trabalho a fazer e elas não fugiam da responsabilidade. A vida de cada uma daquelas pessoas importava. Quem melhor para lutar por elas que elas mesmas?

Nenhum comentário:

Postar um comentário